Terra: a base da condição humana
Neste texto, escrito
no final da década de 1-950, a filósofa Hannah Arendt (1906-1975) reflete
sobre
o vínculo entre o ser
humano e a Terra, salientando a necessidade de pensarmos sobre os rumos
que queremos dar ao desenvolvimento do conhecimento científico.
"Em 1957, um objeto terrestre, feito
pela mão do homem, foi lançado ao Universo, onde durante algumas semanas girou
em torno da Terra segundo as mesmas leis de gravitação que governam o movimento
dos corpos celestes - o Sol, a Lua e as estrelas. É verdade que o satélite
artificial não era nem Lua nem estrela; não era um corpo celeste que pudesse prosseguir
em sua órbita circular por um período de tempo que para nós, mortais limitados
ao tempo da Terra, durasse uma eternidade. Ainda assim, pôde permanecer nos
céus durante ,algum tempo; e lá ficou, movendo-se no convívio dos astros como
se estes o houvessem provisoriamente admitido em sua sublime companhia. [...]
O curioso, porém, é que essa alegria
não foi triunfal; o que encheu o coração dos homens que, agora, ao erguer
os olhos para os céus, podiam contemplar uma de suas obras, não foi orgulho nem
assombro ante a enormidade da força e da proficiência humanas. A reação
imediata, expressa espontaneamente, foi alívio ante o primeiro 'passo para
libertar o homem de sua prisão na Terra'. [...] Há já algum tempo este tipo de
sentimento vem--se tornando comum; e mostra que, em toda parte, os homens
não tardam a adaptar-se às descobertas da ciência e aos feitos da técnica, mas,
ao contrário, estão décadas à sua frente. Neste caso, como outros, a ciência
apenas realizou e afirmou aquilo que os homens haviam antecipado em sonhos -
sonhos que não eram loucos nem ociosos. [...].
A Terra é a própria quintessência da condição
humana e, ao que sabemos, sua natureza pode ser singular no Universo, a
única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem
mover-se e respirar sem esforço e artificio. O mundo - artificio humano -
separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em
si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece
ligado a todos os outros organismos vivos. Recentemente, a ciência vem-se
esforçando por tornar 'artificial' a própria vida, por cortar o ultimo
laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da
prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida de proveta, no desejo
de misturar, 'sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas
comprovadamente capazes a fim de produzir seres humanos superiores' é alterar-lhes
o tamanho, a forma e a função'; e talvez o desejo de fugir à condição humana
esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do
limite dos cem anos.
Esse homem futuro, que segundo os cientistas será
produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a
existência humana tal como nos foi dada - um dom gratuito vindo do nada
(secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo
produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de
realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar de nossa atual
capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas se
desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico - e
esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão
política de primeira grandeza, e, portanto, não deve ser decidida por
cientistas profissionais nem por políticos profissionais."
ARENDT, Hannah. Á condição
humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 9-10.
Gabarito da Atividade
1) a) Uma das
possibilidades de resposta é esta: a afirmação de que "os humanos
estão décadas à frente das descobertas científicas e dos feitos
técnicos" expressa a ideia do texto de que colocar em órbita um
satélite artificial no final da década de 1-950 foi o primeiro
passo para a realização do desejo humano de ultrapassar as fronteiras do
planeta Terra e conhecer o espaço. Esse desejo foi expresso muito antes
não obras de ficção científica. Outra possibilidade de explicação para a
afirmação é a de que a ciência é impulsionada pelos sonhos humanos.
No caso, o desejo de saber o que há além do nosso planeta impulsionou
as pesquisas que levaram ao desenvolvimento do primeiro satélite artificial e à
sua colocação em órbita (e muito mais depois). Esse princípio seria
aplicável a muitas descobertas cientificas e ao desenvolvimento de
novas tecnologias: "Neste caso, e como outros, a ciência apenas realizou e
afirmou aquilo que os homens haviam antecipado em sonhos".
Certamente, ou outras explicações
serão apresentadas pelos alunos. Em todos os casos o que se deve avaliar
são a coerência com o texto e a clareza dos argumentos.
b) Segundo o texto, há muito
tempo, o ser humano procura fugir de sua e condição natural. Isso pode ser
verificado em sua tentativa insistente de se separar do mundo animal, de
buscar de maneira artificial a geração ou o prolongamento da vida e de criar
condições de se libertar da Terra: " [. . .] a ciência vem-se
esforçando por tornar 'artificial' a própria vida, por cortar o último aço
que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de
fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida de
proveta, no desejo de misturar, sob o microscópio, o plasma seminal
congelado de pessoas comprovadamente capazes a fim de produzir seres humanos
superiores' e 'alterar(-lhes) o tamanha, a forma e a função'; e
talvez o desejo de fugir à condição humana esta presente na esperança de
prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos".
2) A Terra, no sentido de
natureza, pode ser compreendida como prisão ou como fundamento de nossa
condição. Por um lado, a Terra é o fundamento da natureza humana. Somos
animais mamíferos terrestres e nossas possibilidades decorrem desse fato.
Se somos como somos em grande parte devemos isso à natureza, que
possibilitou nosso desenvolvimento, mês também nossas limitações. Por outro lado,
somos animais que produzem artifícios (cultura), que interferem na Terra e
na natureza humana. Podemos modificar a natureza externa e a nossa. Isso nos dá
certo poder. A questão é avaliar se estamos dispostos a usar esse
poder para mudar radicalmente nossa condição.
3) Espera-se que o aluno perceba
que o texto foi escrito no final da década de 1950, e de lá para cá o
desenvolvimento científico e a intervenção tecnológica na sociedade e
sobre a natureza aumentaram". O avanço das ciências medicas
e biológicas e o desenvolvimento da engenharia genética, entre outros fatores,
estão abrindo possibilidades de mudanças radicais na Terra e no ser
humano. Para alguns estudiosos, tai situação implicará tamanha
transformação que será necessário rediscutir o conceito de natureza humana;
para outros, o ser humano saberá utilizar para o seu bem o avanço
científico, preservando suas características. Na atividade de debate, além
da coerência dos argumentos, pode-se avaliar a postura dos alunos diante
das opiniões dos colegas. Espera-se que os colegas sejam ouvidos com
respeito e empatia e quê as diferentes opiniões sejam
consideradas, admitindo-se a possibilidade de mudar de ideia diante
de bons argumentos.
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